SEGUROS: Compliance em Saúde Suplementar para o combate às fraudes em OPME

Danilo Leme Crespo, especialista em Direito Securitário

 

Um novo Compliance no Setor de Saúde Suplementar para solução de um velho problema
As fraudes em Órteses, Próteses e Materiais Especiais-OPME

 

 

Fabiano Catran [1]

Danilo Leme Crespo [2]

RESUMO: Século XXI. Brasil. Vem a público algo que já se imaginava, mas de doloroso reconhecimento: os escândalos de corrupção, lavagem de dinheiro e outros delitos correlatos. O crime organizado alcança uma das empresas estatais mais sólidas do país. Inúmeros executivos são responsabilizados. Na Saúde Suplementar, uma triste e pessimista realidade: desvela-se a máfia das próteses, órteses e materiais especiais-OPME, que mercantiliza a medicina e põe em risco a sustentabilidade assistencial. O Estado, para maior regulação do Setor de Saúde, passa a adaptar e redimensionar a regulamentação. Paralelamente a isso, delega-se às Instituições o dever de autorregulação e autogestão das condutas humanas que as exponham a riscos de todo gênero. Difunde-se, então, a necessidade de implementação de programas de Compliance para reestabelecer o comprometimento ético e normativo em ambiente corporativo. As Operadoras de Saúde, neste aspecto, têm de adotar novas ações para identificação, análise e tratamento dos riscos a que se submetem, assim como o devido reporte às autoridades. O presente artigo abordará esse desafio imposto às Operadoras de Saúde, com enfoque especial ao combate à fraude de procedimentos que envolvam órteses, próteses e materiais especiais-OPME.

PALAVRAS-CHAVE: Compliance. Saúde Suplementar. Fraudes. Órteses, Próteses e Materiais Especiais-OPME

 

SUMÁRIO

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS; II – A MERCANTILIZAÇÃO DA MEDICINA: UMA AMEAÇA AO SETOR DE SAÚDE; III – O CRIME ORGANIZADO: A MÁFIA DAS PRÓTESES, ÓRTESES E MATERIAIS ESPECIAIS-OPME; IV – O COMPLIANCE NO SETOR DE SAÚDE SUPLEMENTAR; IV.1 – A Sociedade do Risco: uma reflexão necessária; IV.2 – O Compliance como boa prática de Governança Corporativa e Controles Internos; IV.3 – O Compliance no Setor da Saúde Suplementar: o combate às fraudes em Órteses, Próteses e Materiais Especiais-OPME; V – CONCLUSÃO; VI – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

I – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tema não é novo, mas ganha grande relevo no dia-a-dia das Operadoras de Saúde. Ele não é uma exclusividade brasileira, mas sua inobservância pode pôr em xeque a sustentabilidade do Setor de Saúde em solo tupiniquim, seja pelas particularidades do panorama jurídico-político-econômico de um país de dimensões continentais, seja pela busca incessante do lucro (fruto de um sistema capitalista exacerbado) ou, ainda, pela mercantilização da própria vida, que escancara a falta de ética de alguns profissionais e grandes Corporações.

Em razão dos inúmeros escândalos que também assolaram o Setor de Saúde nos últimos anos, justificando a instauração de Comissões Parlamentares de Inquéritos-CPIs para investigar a “máfia das próteses”, o Compliance acabou por se expandir, ainda que timidamente, como medida impositiva ao bom desenvolvimento desta custosa, complexa e conturbada atividade empresarial no Brasil. As organizações criminosas viram como um grande atrativo a realização de procedimentos cirúrgicos – a maioria deles odontológicos, cardiológicos, neurológicos e ortopédicos – que envolviam a utilização de OPME (órteses, próteses e materiais especiais).

Se, por um lado, os parafusos, próteses, cateteres, hastes, fios, pinos, marcapassos, stents e outros materiais implantáveis retratam um grande avanço tecnológico da Medicina no tratamento de traumas e doenças, por outro serviram como uma verdadeira “mina de ouro” para que pessoas e empresas, de forma irresponsável, lhes dessem uma destinação delinquente e extremamente lucrativa.

A reação do Estado não tardou a chegar. Já era sabido que aquela antiga postura inerte e coadjuvante, fruto do liberalismo econômico e da ideologia do livre mercado, sustentada por Adam Smith, não sobreviveria à Revolução Industrial, aos novos conflitos sociais e, acima de tudo, ao aperfeiçoamento dos comportamentos danosos do crime organizado. Profundas modificações ocorreram, fazendo com que o Estado abandonasse a passividade de simples guardião da ordem e adotasse, então, uma postura interventora.

Neste panorama de insegurança, seria ingenuidade confiar, apenas, na autorregulação das empresas ou na mera adoção de política sancionatória pelo Estado, com efeitos irradiados apenas à esfera repressiva. A união de forças e a ambivalência entre coerção e cooperação[3] se mostrava essencial. O Estado-Regulador deveria normatizar a questão, mas também delegar, às próprias Corporações, parte da responsabilidade da gestão de desvios. Ter-se-ia, assim, a “autorregulação regulada[4], com espectro amplo, preventivo e muito mais efetivo.

Para tentar garantir um ambiente empresarial ético e seguro, não só voltado para a punição, o Brasil passa a aderir a tratados internacionais e a regulamentar (leia-se combater) a corrupção, a lavagem de dinheiro, a fraude e outras condutas ilícitas adjacentes. Por outro lado, e no mesmo sentido, as Operadoras de Saúde se viram obrigadas a adotar mecanismos de Compliance como padrão obrigatório de aderência àquilo que se denomina Governança Corporativa.

O objetivo maior é o de impedir, dentre outros fatores, que as quadrilhas, sob o manto do (falso) “exercício da medicina”, realizem cirurgias desnecessárias e de risco ao paciente; utilizem materiais sabidamente desnecessários (ou em quantidade excessiva) e técnicas experimentais como fonte de lucros indevidos; superfaturem os preços de materiais como cartelização do mercado ou manipulem a Justiça por meio de processos fraudulentos[5].

Para eliminar – ou ao menos minimizar – os riscos a que estão submetidas, as Operadoras necessitam de um programa de Compliance efetivo e organizado, especialmente porque, hoje, a regulamentação é extremamente complexa, exigindo, inclusive, reportes periódicos à Autarquia Federal, assim como a denúncia de atos fraudulentos e/ou atividades suspeitas, sempre visando a fiscalização prévia, a apuração regular e, quando cabível, a atividade sancionatória.

Ocorre que, por mais que se busquem meios hábeis a assegurar o estrito cumprimento da norma, bem como a observância aos princípios éticos que regem a atividade e as boas práticas empresariais, não se pode olvidar que o crime organizado se inova (e se renova) a cada dia, fazendo com que o benefício financeiro indevido seja o combustível que retroalimenta um sistema transgressor, imoral e odioso.

Cada um dos ramos empresariais possui suas especificidades e está sujeito a riscos distintos, daí porque inexiste um modelo de Compliance pronto e acabado. A implantação do Compliance não é uma liberalidade da empresa, mas o desenvolvimento e alcance do controle da gestão a ser exercida dependerá, em maior ou menor medida, da definição de mitigação e controle de risco que a empresa pretende internalizar.

A grande maioria das Operadoras de Saúde tem dificuldade na implementação de controles internos que evitem as condutas ilícitas e as práticas criminosas que tanto interferem na higidez do negócio e abalam a reputação da empresa e de seus respectivos administradores. Neste aspecto, o Setor de Saúde precisa evoluir, se (re)inventar e superar seus percalços, o que gera grande desafio do ponto de vista prático, principalmente pela ausência de uma cultura mais eficaz sobre o Compliance, que ainda se desenvolve de forma embrionária.

Embora o presente material, por suas particularidades, não permita incursões mais aprofundadas e abrangentes sobre o tema, ele visa demonstrar que o Compliance é um aliado das Operadoras de Saúde na identificação, prevenção e solução de possíveis desvios. O pano de fundo, que norteia o estudo, está voltado à análise e adoção de controles internos específicos ao seguimento de OPME (órtese, prótese e materiais especiais), responsável por grande parte das distorções e gastos financeiros suportados pelos planos e seguros saúde.

 

II – A MERCANTILIZAÇÃO DA MEDICINA: UMA AMEAÇA AO SETOR DE SAÚDE

Cientistas suecos, na década de 1950, criaram o primeiro marca-passo implantável, demonstrando a eficiência do uso de aparelhos eletrônicos no tratamento de doenças. A partir daí, e com um aprimoramento cada vez mais crescente, inúmeros equipamentos e materiais foram desenvolvidos: estimuladores cerebrais, desfibriladores, próteses ortopédicas, órteses, dentre outros. No Brasil, a partir de 1990, diversas empresas, nacionais e estrangeiras, passaram a se dedicar à fabricação destes materiais[6].

Segundo dados da Agência Nacional de Saúde-ANS, o mercado nacional de produtos médicos movimentou, apenas no ano de 2014, cerca de R$ 19,7 bilhões. A categoria de Dispositivos Médicos Implantáveis (DMI) foi a que mais cresceu, chegando a 249% entre 2007 e 2014. A estimativa é que existam, ao menos, 8 mil tipos destes materiais, cada um com suas características próprias, riscos e exposição ao uso[7].

Algumas especificidades deste setor devem ser registradas, pois intimamente ligadas ao tema central do presente estudo. Em primeiro lugar, os investimentos com o desenvolvimento das pesquisas científicas são extremamente vultosos. O avanço tecnológico alcança um ritmo vertiginoso e a constante obsolescência dos materiais e equipamentos se torna inescondível. Há, ainda, um acirramento concorrencial que envolve tanto as empresas multinacionais como aquelas de médio ou pequeno porte.

Soma-se a isso o fato de que, na atualidade, uma grande parcela das despesas médico-hospitalares é arcada pelas Operadoras de Saúde (Setor Privado), criando a figura de um terceiro pagador. A remuneração dos médicos, nas consultas e procedimentos particulares, não mais se equipara, evidentemente, àquela paga pelas Operadoras de Saúde, que precisam reduzir os custos para manter a estabilidade financeira do mútuo que administram. Ademais, os altíssimos custos de OPME, nestas situações, tornaram-se desimportantes, já que deixaram de ser arcados por médicos ou pacientes.

Não bastasse o “inflacionamento” natural dos preços, o uso de OPME, muitas vezes desnecessário ou em quantidade exacerbada, tornou-se uma forma de compensação dos honorários profissionais e, mais do que isso, uma fonte de ganho financeiro. Muito embora o Código de Ética Médica vede tal conduta, muitos médicos passaram a receber “comissões” e a lucrar com a indicação de materiais deste ou daquele fabricante, inclusive no tocante ao excesso.

Como se verá com maior propriedade no próximo tópico, as Comissões Parlamentares de Inquéritos-CPIs, criadas para investigar a “máfia das próteses”, apuraram a existência de relações promíscuas entre fabricantes de próteses e médicos, as quais mercantilizam a medicina, transformando-a num verdadeiro “balcão de negócios”. Lamentavelmente, profissionais chegavam a receber uma “comissão” de até 30% sobre o valor dos materiais usados em cirurgias e outros procedimentos[8].

As vantagens beneficiavam ambos os interessados: uma renda extraordinária ao profissional, direta ou indiretamente; um retorno financeiro ao fabricante, capaz de lhe proporcionar, com grande sobra, a recuperação de todo o seu investimento, inclusive as “comissões”, tributos e demais custos comerciais com a operação. A conta bilionária de tudo isso, com o perdão da obviedade, era destinada às Operadoras de Saúde ou ao próprio Sistema Único de Saúde-SUS.

Definitivamente, aquela cultura que começou com a entrega de brindes e amostras grátis evoluiu para o patrocínio de viagens e congressos e, há alguns anos, desaguou no pagamento de altíssimas “comissões”. Mas, neste aspecto, um alerta precisa ser feito: a “máfia das fraudes” envolve uma minoria setorial e não pode, em hipótese alguma, ser generalizada à toda a classe médica. A evolução da medicina muito se deve à dedicação de profissionais que, comprometidos com o dever ético, contribuem para o bem-estar social e para a qualidade de vida dos seres humanos.

De toda forma, a noção de que algo estava (e ainda está) errado fica nítida. A experiência comum mostra que a assistência médica é condição imprescindível para a longevidade das pessoas. No entanto, privilegiar a vantagem pecuniária e deixar a vida do paciente em segundo plano seria atestar a falência de um modelo estrutural de saúde que sucumbe, cruelmente, diante da ganância de um capitalismo desvairado.

Esta influência perniciosa da “indústria de OPME” é um verdadeiro mal para a sociedade. Michael Sandel, ao descrever os limites morais do mercado, já alertava que a mercantilização de tudo aguça a desigualdade, aumenta demasiadamente a importância do dinheiro e potencializa a tendência corrosiva do mercado, afastando aqueles limites morais[9] que ainda remanescem em atividades como a assistência à saúde.

Mesmo para quem entenda que o recebimento de “comissões” pelos médicos é apenas imoral (e não ilegal), este raciocínio não subsiste nas hipóteses em que a escolha do material (de determinado fabricante) não é o mais indicado ao caso; que o material não é sequer necessário ou, ainda, solicitado em quantidade sabidamente demasiada, tudo convergindo à manutenção e sustentação do esquema fraudulento.

Aliás, a imoralidade – mesmo nos casos em que se dissocia da ilegalidade – já possibilita, por si só, a conclusão de que a introdução de incentivos financeiros a determinados profissionais do Setor da Saúde corrompe atitudes e regras que precisam ser protegidas. A ética define, ou deferia definir, certo grau de previsibilidade nas ações humanas, estabelecendo valores e ditando padrões seguros de comportamento.

Segundo Miguel Reale, Moral e Direito, como ciência, não podem, no pós-positivismo, ser avaliados de modo estanque. Há uma correlação entre ambos. O Direito representa apenas o mínimo de Moral declarado obrigatório para que a sociedade possa sobreviver[10]. Logo, quando a Moral se afasta do Direito, a confiança das relações jurídicas entra em colapso. A Moral e o Direito não se confundem, mas se interligam de modo obrigatório em prol da sobrevivência da própria sociedade[11].

São as relações jurídicas honestas que geram a confiança, fator redutor de complexidade e base de organização e suporte fático das atividades negociais[12]. Quando esta confiança não surte seus efeitos, os mecanismos de interação se mostram insuficientes e a tendência é de crise generalizada, na contramão da efetividade do próprio direito[13]. Principalmente no Setor Privado de Saúde, em que as Operadoras precificam o serviço com base em cálculos atuariais, a confiança não poderia ser alijada como se nenhuma interferência tivesse nas fontes jurídicas que foram o eixo central do contrato[14].

Estabelecidas tais premissas, serão abordados, no próximo tópico, os mecanismos utilizados nas fraudes de OPME, que tanto preocupam as áreas de Compliance e Auditoria das Operadoras e que disseminaram seus efeitos deletérios no Setor de Saúde, evidenciando a audácia dos criminosos e os riscos a que submeteram inúmeros pacientes, em troca da obtenção de vantagem econômica e benefícios pessoais indevidos.

 

III – O CRIME ORGANIZADO: A MÁFIA DAS PRÓTESES, ÓRTESES E MATERIAIS ESPECIAIS-OPME

A obra de Pedro Ramos, intitulada “a máfia das próteses: uma ameaça à saúde”, traz detalhes de inúmeros relatos que desencadearam, desde o ano de 2009, uma série de reportagens jornalísticas publicadas por reconhecidos órgãos de imprensa. Com a atuação conjunta da imprensa, da Associação Brasileira de Planos de Saúde-ABRAMGE, da Polícia Federal, do Ministério da Saúde e do Ministério Público, houve a insaturação de três Comissões Parlamentares de Inquérito-CPIs[15] e de Inquéritos Policiais que visaram a apuração de condutas tidas como criminosas. Os trabalhos culminaram em alguns indiciamentos e até mesmo prisões[16].

O modus operandi praticado era relativamente simples e envolvia, segundo a investigação, alguns fabricantes, médicos, representantes comerciais e advogados[17]. Abrangendo, especialmente, os segmentos de ortopedia, cardiologia, neurologia e odontologia, a organização criminosa se valia do atrativo financeiro para aliciar tais profissionais. Além disso, os fabricantes[18] também atuavam, organizadamente, para:

  • manipular o mercado com práticas de concorrência desleal e cartelização;
  • sonegar informações para reduzir a transparência no processo de comercialização e utilização de tecnologias e produtos;
  • exercer atividade lobista para obter favorecimento e adequar leis, normas e procedimentos aos seus interesses comerciais;
  • manipular licitações para compra de produtos no setor público e também no privado;
  • praticar preços artificiais (superfaturamento).

Quanto aos médicos, estes recebiam o pagamento direto de “comissões” de até 30% sobre o valor dos produtos e serviços usados em procedimentos ou, alternativamente (quiçá cumulativamente), outras formas de benefícios financeiros, ainda que indiretos, como o custeio de viagens, congressos e treinamentos, muitas vezes mascarados por um pseudo “contrato de consultoria”[19].

Para justificar o recebimento dos valores[20], os médicos se comprometiam a:

  • induzir os pacientes à realização de cirurgias e implantes, muitas vezes desnecessários;
  • inflacionar os custos com o uso de produtos e tecnologia mais caros apenas para aumentar os ganhos, sem benefício ao paciente;
  • utilizar mais material do que o necessário e cobrar por material não utilizado;
  • desviar material do setor público para utilizar em suas clínicas particulares;
  • em conluio com advogados, fraudar diagnósticos e falsificar orçamentos apresentados em ações judiciais com o SUS ou planos de saúde.

Se algo não saísse como planejado, o sistema fraudulento contava com a atuação de advogados especializados[21] nas seguintes frentes:

  • ajuizamento de ações para obrigar o SUS e os planos de saúde a pagarem por procedimentos desnecessários e superfaturados;
  • induzimento dos pacientes a entrarem na Justiça para forçar a cobertura das cirurgias dos médicos da máfia;
  • manutenção de uma indústria de liminares com base em documentos fraudados e em outros expedientes criminosos.

Conquanto inexista, na legislação penal brasileira, dispositivo específico para punir o recebimento de “comissões”, não se pode admitir, sobretudo do ponto de vista ético, a mercantilização da medicina[22], sua utilização como comércio[23] ou, ainda, para influenciar o mercado de OPME e chancelar, por conseguinte, vantagem manifestamente descabida[24]. No mesmo sentido, cabe ao advogado abster-se de utilizar sua influência em benefício próprio[25] e de atuar contra a ética, moral, honestidade e dignidade da pessoa humana[26], vedada, igualmente, a mercantilização da profissão[27] ou a exposição de fatos que falseiem a verdade ou atentem contra a boa-fé[28].

Em razão dos resultados produzidos, o profissional, seja ele quem for, responderá integralmente pelos reflexos dos atos praticados, dolosa ou culposamente. Os depoimentos de diversos pacientes, colhidos nas Comissões Parlamentares de Inquérito-CPIs, são autoexplicativos e evidenciam, a um só tempo, que eles (a) são enganados por médicos mal-intencionados para se submeterem a cirurgias e implantes; (b) tornam-se “laranjas” de processos judiciais fraudados; (c) e são expostos a procedimentos e riscos desnecessários[29].

Tais golpes, quando atingem a esfera de saúde pública, afetando o orçamento do governo, geram prejuízos generalizados, especialmente aos beneficiários que necessitam do Sistema Único de Saúde-SUS. Quando é praticado contra os planos e seguros-saúde, a conta é paga pela massa de usuários e reflete, evidentemente, no preço do serviço e seus respectivos reajustes[30], além de interferir na qualidade e volume do serviço prestado. De uma forma ou de outra, um dano de proporções coletivas.

Estima-se que os custos das Operadoras de Saúde brasileiras com golpes, desvios e outros desperdícios equivalem, anualmente, a 19% de toda a despesa assistencial, o que representa um total de 22,5 bilhões de reais31. Considera-se, ainda, que 18% dos gastos totais das contas hospitalares são fraudes e 40% dos pedidos de exames laboratoriais não são necessários, o que eleva o gasto em mais 22 bilhões de reais[32].

Enquanto os transgressores lucram altos valores com o crime organizado, o Setor Privado de Saúde tem de absorver o prejuízo financeiro, como se o benefício de uma seleta minoria pudesse se sobrepor ao todo. Daí a importância e a necessidade da implantação de um programa de Compliance estruturado, voltado à prevenção e correção imediata de riscos, como se verá a seguir.

 

IV – O COMPLIANCE NO SETOR DE SAÚDE SUPLEMENTAR

IV.1 – A Sociedade do Risco: uma reflexão necessária[33]

 A pós-modernidade tem no imediatismo uma de suas principais características. O hábito mercantilista tomou conta da sociedade. O altruísmo inato do homem, que deveria ser desenvolvido com a evolução da humanidade, dá lugar a um verdadeiro consumismo apoteótico que jamais será capaz de trazer a sensação de satisfação. O valor e a importância do dinheiro estão cada vez mais presentes.

Se, antes, a visão do futuro guiava o presente, hoje, nos dizeres de Zygmunt Bauman, nossos contemporâneos vivem sem esse futuro, de forma descuidada, ignorada e negligente quanto ao que virá[34]. O “princípio responsabilidade” de Hans Jonas já alertava que a incerteza, advinda da conduta humana na sociedade atual, ameaça tornar inoperante a perspectiva ética de consciência em relação ao futuro[35]. O romance intitulado Eugénia Grandet[36], de Honoré de Balzac, chega a atribuir a pecha de avarento aos homens da sociedade atual.

Com a Revolução Industrial, o consumo, em oposição às formas de vida precedentes, associa a felicidade não tanto à satisfação das necessidades, mas a um volume e uma intensidade de desejos sempre crescentes[37], o que exige uma situação econômica muito bem abastada. Este fato, fruto do capitalismo perdulário que transforma tudo em mercadoria, torna o homem refém de seus próprios atos e reduz, como visto anteriormente, a carga moral das relações humanas e empresariais.

A sociedade atual do descontrole, que já recebeu inúmeras nomenclaturas pelos estudiosos do tema e que cria um panorama de insanidade e incerteza, recepciona (e absorve) inúmeros riscos criados pelo homem, não necessariamente voltados à noção de progresso, muito menos intrínsecos ao desenvolvimento natural das atividades.

Ulrich Beck, avaliando as mudanças havidas nas últimas décadas, afirma ter se instaurado a “sociedade industrial do risco”, não prevista em manuais teóricos ou políticos dos séculos passados. No centro da questão atual está uma realidade indisfarçável: a busca social de riqueza é acompanhada pela produção social de risco. Os efeitos generalizados dessa perspectiva já é uma realidade no Setor de Saúde, cada vez mais agravado pela cobiça e ganância dos seres humanos (carência material), numa espécie de poço de necessidades sem fundo[38].

Conceitualmente, risco é a probabilidade de que um determinado evento adverso ocorra durante um período de tempo definido ou definível. Para John Adams, o risco pode ser subdividido, de modo didático, em “risco objetivo” (tipo de coisa que os especialistas conhecem) ou “risco percebido” (antecipação de acontecimentos futuros)[39].

Ainda que se conheça, hoje, parte destes riscos, outros integram um componente futuro, que precisa ser evitado. Daí a razão de se ter afirmado, anteriormente, que o Compliance também deve atuar na esfera preventiva, potencializando a capacidade das Corporações lidarem, de forma efetiva, com as situações contínuas de ameaças e danos.

Por mais que a busca pelo risco zero seja utópica e extremamente custosa, a percepção sobre tal cenário torna as Instituições mais cuidadosas e aprimora a gestão, ainda que para apenas reduzir o impacto, nas hipóteses em que não for possível evitar o dano. Com a evolução da tecnologia e o acesso à informação, não mais se pode dizer que as empresas, em pleno século XXI, ainda tateiam no escuro ou desconheçam, ao extremo, os riscos potenciais a que estejam submetidas.

Para Anthony Giddens, é essencial a sensibilidade ao risco, assim como a avaliação das probabilidades e a reflexividade em geral, tudo convergindo para a colonização do futuro[40]. Constatações de riscos devem ser um constante exercício de técnicas a serem aperfeiçoadas nas ciências humanas, de racionalidade cotidiana e especializada, quer no campo do interesse ou do próprio Direito.

Isto permite que os riscos possam ser minimizados, canalizados e, quando vindos à luz sob a forma de “efeitos colaterais latentes”[41], isolados, redistribuídos e solucionados de modo a não inviabilizar a própria atividade. É exatamente neste panorama que o Compliance passa a exercer seu papel de protagonismo.

 

IV.2 – O Compliance como boa prática de Governança Corporativa e Controles Internos

Embora o Compliance seja conhecido dos brasileiros desde o final do século passado, a consciência dos empresários pela sua implantação e aperfeiçoamento somente se sedimentou nos últimos anos, mais precisamente em razão de diversos escândalos que geraram grande repercussão midiática, iniciados em meado de 2005. Aliás, foi pelo mesmo motivo que o Estado, anos mais tarde, ampliou o rol de atividades obrigadas a criar programas de Compliance[42], o que foi feito (i) pela Lei 12.683/12, que modificou a Lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro) e (ii) pela Lei 12.846/13, regulamentada pelo Decreto 8.240/15 (prática de atos contra a administração pública).

Antes disso, já haviam sido promulgados (i) o Decreto 3.678/2000 (combate da corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais); (ii) o Decreto 4.410/2002 (Convenção Interamericana contra a corrupção); (iii) o Decreto 5.687/06 (Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção)[43]. Oportuno advertir que, para o Setor da Saúde, também se aplicam as Resoluções Normativas da Agência Nacional da Saúde-ANS (RN 117, RN 124, RN 244, etc.).

Por mais que o Estado tenha abandonado aquela postura liberal típica do laissez-faire, ficou óbvio que, sozinho, ele não solucionaria a questão dos riscos empresariais, ainda mais porque, a despeito de sua (insuficiente) atuação fiscalizatória, o poder simbólico da repressão e contenção, posterior e tardio, carecia de maior efeito prático-inibitório. Não bastasse, também estão em jogo interesses – geradores de riscos – que escapam, ao menos de forma específica, ao preceito literal da norma, sobretudo porque a elasticidade da lei ou regulamento não alcança, naturalmente, todo e qualquer tipo de situação.

As limitações estruturais do Estado lhe impedem que regule e controle, a contento, as especificidades de todas as atividades e o incremento do risco gerado por cada empresa. Há hipóteses que fogem à esfera do domínio governamental e, para estender seus tentáculos, o Estado delega às empresas funções de prevenção de ilícitos (vigilância) e canal de denúncia, atribuindo maior responsabilidade aos particulares no cumprimento dos objetivos de prevenção e controle de riscos. A intervenção estatal fica preservada com a supervisão e correção, mas contando, agora, com a colaboração do entre privado no processo regulatório[44]. Nasce a “autorregulação regulada[45].

O controle que as empresas devem estabelecer para responder, com eficiência, aos riscos a que estão submetidas, presentes e futuros, é chamado de Compliance. Para Ingo Sarlet[46], o Compliance, como mandamento ético, estabelece uma relação entre um “estado de conformidade” e uma determinada “orientação de comportamento”: um compromisso com a Governança Corporativa, com a criação de um sistema complexo de boas práticas, políticas e de controles internos que garantirão, juntos, a máxima eficácia da empresa frente a situações de risco, tendo na prevenção (“ex ante”) a sua principal característica.

Em outras palavras, o Compliance atua de duas formas: uma de ordem subjetiva, baseada em regulamentos internos, como a implementação de boas práticas (fora e dentro da empresa) e a adoção de procedimentos em conformidade com a legislação aplicável à respectiva área de atuação, prevenindo e minimizando riscos e práticas ilícitas, inclusive junto aos clientes e fornecedores; outra de ordem objetiva, decorrente de lei, tais como as obrigações de identificação de clientes, manutenção de registros e comunicação de operações financeiras (artigos 10 e 11da Lei 9.613/98)[47].

A amplitude de um programa de Compliance pode depender de inúmeros fatores, dentre eles os custos com a operacionalização e, especialmente, a definição do risco que a empresa quer (ou não) internalizar. A título de exemplo, e com base nas orientações fornecidas pela Secretaria de Direito Econômico[48] para prevenção de infração à ordem econômica, um programa de Compliance minimamente consistente deve contemplar, ao menos, os seguintes requisitos:

  1. criação de padrões e procedimentos claros com relação à observância da legislação;
  2. indicação e qualificação interna de dirigente com autoridade e competência para coordenar e supervisionar os objetivos propostos e o cumprimento das normas;
  3. treinamento dos funcionários e desenvolvimento de material de apoio, tais como políticas, manuais, palestras, etc., além de fiscalização, pelos dirigentes, dos atos praticados no exercício da atividade empresarial;
  4. definição de mecanismos de disciplina eficientes para controle, identificação e punição dos envolvidos que pratiquem condutas danosas (ou potencialmente danosas), sem prejuízo dos reportes às autoridades competentes, quando necessário;
  5. iniciativa de criação de uma área de auditoria interna e contratação de serviços de auditoria externa e independente, com a definição de intervalo máximo inferior a 2 anos;
  6. Canal de comunicação anônima para eventuais denúncias.

Importante ter claro que o programa de Compliance pode ser incrementado com práticas voluntárias (não obrigatórias) de Governança, aumentando a transparência junto à investidores, valorizando o capital aportado pelos acionistas e, ainda, elevando (e sedimentando) o nome da empresa como estratégia comercial que a diferencie num mercado que se torna, dia-a-dia, cada vez mais competitivo.

 

IV.3 – O Compliance no Setor da Saúde Suplementar: o combate às fraudes em Órteses, Próteses e Materiais Especiais-OPME

Na área de Saúde Suplementar, o foco do programa de Compliance deve estar na promoção de interações éticas entre as Operadoras, seus colaboradores e os demais envolvidos na prestação de serviços aos pacientes. Além dos elementos citados no tópico anterior, aplicáveis a qualquer atividade, o Compliance, na assistência à saúde como um todo, deve contemplar, em acréscimo, os requisitos abaixo[49]:

  1. Comprometimento da alta liderança gerencial e uma política anticorrupção claramente articulada, que aborde não só as interações com o poder público, mas também com os profissionais da saúde;
  2. Implementação de políticas e procedimentos escritos, dando publicidade e transparência às relações estabelecidas entre a empresa/entidade e os profissionais da saúde e que vedem, ou disciplinem, a concessão de patrocínios, benefícios, brindes, almoços, doações ou qualquer tipo de incentivo;
  3. Controles internos formalizados, garantindo a interação ética e legítima da empresa/entidade com os profissionais da saúde no caso de celebração de contratos de consultoria ou prestação de serviços;
  4. Realização de avaliações periódicas de riscos, fruto do monitoramento da Governança Corporativa e das auditorias internas e externas;
  5. Educação e treinamentos efetivos na busca da prevenção de desvios;
  6. Realização de due diligence nas relações firmadas com terceiros;
  7. Medidas disciplinares aplicáveis no caso de violação comprovada de regras de Compliance, que deverão ser amplamente divulgadas.

Sobre o tema, os Estudos internacionais apontam as três práticas mais utilizadas no combate à fraude: (i) criação de normas anticorrupção; (ii) transparência dos setores da saúde por meio da inserção de tecnologias, como prontuários eletrônicos e softwares financeiros em hospitais, fornecedores, distribuidores, etc; (iii) implementação de novos modelos de pagamentos prospectivos, tal como aqueles baseados no Diagnosis Related Grou-DRG[50]. O quadro abaixo[51] traz uma visão didática e mais detalhada das estratégias mundialmente adotadas:

Especificamente em relação ao (mau) uso de próteses, órteses e materiais especiais-OPME, é preciso que o Setor Privado de Saúde, personificado nas Operadoras de planos e seguros-saúde, atuem de modo a evitar (ou reduzir) a fraude, que impõe custos significativos ao sistema. Nos países como o Brasil, em que é permitida a iniciativa privada na assistência à saúde, o cuidado deve ser ainda maior.

A implementação de um programa de Compliance bem estruturado na Saúde Suplementar tem significativa importância na (a) contenção de despesas médicas e otimização da eficiência dos serviços hospitalares; (b) modificação do comportamento médico na definição do diagnóstico, indicação cirúrgica e uso de OPMEs; (c) e transparência dos gastos, procedimentos, efetiva utilização e quantidade de OPMEs utilizadas.

Para tanto, algumas medidas podem ser adotadas pelas Operadoras de Saúde para otimizar o resultado prático da autorregulação:

  1. Aperfeiçoamento contínuo da área de auditoria médica para análise exclusiva de procedimentos que envolvam OPMEs e a respectiva quantidade de material definida, dando maior amplitude às discussões junto aos médicos, clínicas e hospitais, sempre visando a preservação da segurança do paciente e das boas práticas de saúde;
  2. Criação de comitês internos para avaliação multidisciplinar dos casos que envolvam OPMEs, inclusive no tocante ao aspecto legal;
  3. Contratação de assessoria médica especializada, terceirizada e independente, a fim de que atue nas situações de maior complexidade (inclusive junto ao Núcleo de Apoio Técnico-NAT dos Tribunais) e contribua com a solução técnica adequada;
  4. Realização de junta-médica para viabilizar a segunda opinião de médico desempatador, observando os prazos e demais requisitos da Resolução Normativa nº 424/2017 da Agência Nacional de Saúde Suplementar-ANS;
  5. Definição de uma área de assessoria jurídica bem estruturada para combate de liminares, autuações regulatórias e garantia dos demais interesses da empresa;
  6. Investimento em inteligência, humana ou tecnológica, para revisão de códigos e nomenclaturas utilizadas nos pedidos de OPMEs, bem como de análise comparativa de similaridade e equivalência entre os materiais solicitados e os materiais produzidos por outros fornecedores, evitando fraudes, desvios e distorções;
  7. Revisão periódica dos fornecedores de OPMEs, política de (re)negociação e acompanhamento dos preços médicos praticados no mercado;
  8. Estruturação de área de gestão de rede para contratação de recursos médicos, acompanhamento e fiscalização do trabalho desenvolvido;
  9. Cadastro efetivo de fabricantes, médicos e advogados que atuem, de forma contumaz, em casos envolvendo fraudes de OPMEs;
  10. Atuação efetiva e permanente da área de gestão de risco no desenvolvimento e estruturação de condutas éticas, com regras claras e responsabilidades bem definidas;

No início de 2015 o Ministério da Saúde criou um grupo de Trabalho Interinstitucional[52] para reestruturar e ampliar a transparência do processo de produção, importação, aquisição, distribuição, utilização e aprimoramento da regulação clínica de casos envolvendo órteses, próteses e materiais especiais-OPME. A finalidade inicial estava pautada na adoção de medidas no Setor de Saúde Suplementar para: (a) criminalizar as fraudes no fornecimento, aquisição ou prescrição de OPME; (b) produzir e disseminar documentos de boas práticas de utilização de OPME; (c) realizar processo de qualificação de profissionais e técnicos envolvidos nas atividades clínicas e cirúrgicas, bem como no ciclo dos processos de aquisição, acondicionamento, gestão de estoque, controle, auditoria e tecnovigilância de OPME.

As empresas participantes deste seleto grupo elencaram às Agências Reguladoras (ANS e ANVISA) uma série de requisições que, se efetivadas, contribuiriam, e muito, para melhoria dos controles internos e, consequentemente, potencializaria o combate às fraudes de OPME:

  1. Revisão, pela ANS, dos prazos máximos para garantia de atendimento de procedimentos cirúrgicos que envolvam OPME, suspendendo a contagem sempre que for instaurada junta médica, em especial nos casos cirúrgicos;
  2. Criação de um marco regulatório, pela ANVISA, acerca do registro de OPME, estabelecendo nomenclaturas padronizadas a serem observadas pelos fabricantes e distribuidores;
  3. Padronização dos códigos de procedimentos para cada tipo de cirurgia, com auxílio das sociedades médicas, criando protocolos para atendimentos convencionais, visando orientar e uniformizar as condutas com base nas melhores práticas;
  4. Tornar público o preço-base de OPME, permitindo maior controle e monitoramento;
  5. Aperfeiçoamento da gestão do corpo clínico, com implantação de modelos de Governança Corporativa e clínica nas instituições de saúde;
  6. Incentivo ao intercâmbio de informações assistenciais entre os prestadores públicos e privados;
  7. Criação de um sistema nacional de avaliação da qualidade em saúde, desenvolvendo um modelo assistencial integrado, com foco no paciente;
  8. Revisão das regras que regulamentam os casos de divergência médica quando há questionamento sobre a utilização de OPME;
  9. Aproximação entre as auditoras das Operadoras, as Sociedades de especialistas e o Conselho Federal de Medicina-CFM, por meio de um comitê permanente dedicado à melhoria das relações entre os agentes do setor;
  10. Criação de um canal na ANS ou CFM para recebimento de denúncias de profissionais de saúde, fornecedores ou hospitais com má prática, visando a apuração e avaliação das denúncias e adoção das providências necessárias para penalização dos infratores.

Por todo o exposto, fica claro que o tema, por sua densidade, comportaria uma pesquisa muito mais ampla, mas incompatível com a proposta original e as diretrizes traçadas para o presente artigo. Inúmeros exemplos poderiam ser aqui mencionados, até porque cabe a cada Operadora de Saúde definir os níveis de gestão de risco a que pretende se submeter, de acordo com o contexto em que está inserida, com a complexidade de sua operação e, acima de tudo, com o arrojo em estabelecer uma gestão proativa para identificar, prevenir e sanar as ameaças que lhes expõem, frutos de ações antiéticas e ilegais.

A mensagem que fica, e que serve como fio condutor para anunciar a conclusão deste trabalho, é que há, no Setor de Saúde Suplementar, um campo extremamente fértil para se avançar em relação ao Compliance. A adoção de novas ações e a maturação de um programa de Compliance que estabeleça uma fiscalização confiável e eficiente é condição essencial para o desenvolvimento de uma política de gestão de risco que assegure a cultura organizacional, a conformidade normativa e a responsabilização de eventuais infratores da empresa.

 

V – CONCLUSÃO

O risco, decorrente de toda e qualquer atividade empresarial, está cada vez mais presente no cotidiano das Operadoras de Saúde. Estima-se que, mundialmente, as fraudes geram uma perda global anual de U$ 260 bilhões de dólares no Setor de Saúde[53], fato que se agrava, no Brasil, pela atuação do crime organizado. Nos últimos 3 anos, o impacto das fraudes em solo brasileiro chegou ao patamar de R$77 bilhões de reais.

Por mais que a máfia das próteses, órteses e materiais especiais-OPME tenha sido desvelada no ano de 2014, pouco – ou quase nada – foi feito, especialmente se analisadas as reais dimensões do problema. Por mais que se conheçam os potenciais personagens e o modus operandi utilizado, o Setor de Saúde Suplementar ainda agoniza com as relações obscuras que continuam se infiltrando entre o interesse econômico e a prática médica.

Este fenômeno está longe de ser recente, mas sua solução jamais será alcançada se combatido com as antigas técnicas empresariais de gestão de risco. Dito de outro modo, é preciso um novo Compliance no Setor da Saúde Suplementar para a solução de um velho problema: as fraudes em Órteses, Próteses e Materiais Especiais-OPME. Este, aliás, o título que se deu ao presente artigo.

O jogo de palavras foi proposital. Os termos “novo” e “velho” servem para exaltar uma antítese cronológica que impõe ao Compliance uma única e solitária diretriz: avançar para prosperar. As empresas passam a ter, invariavelmente, um poder-dever de cooperar com o Estado no desenvolvimento de programas que controlem os riscos inerentes à sua atividade (autorregulação regulada). Isto inaugura um crescente volume de exigências (controles internos) e impõe ao Compliance, cada vez mais, a necessidade de se inovar para resolver os antigos problemas e aqueles que ainda estão por vir.

A propósito, a iniciativa de organização de um compêndio de estudos sobre o Compliance, que gerou o honroso convite aos subscritores deste artigo, é uma grande evidência de que o tema já integra o cotidiano das grandes Instituições. A problematização, cada vez mais intrigante (e instigante), e o crescimento exponencial do debate tornam flagrante, a um só tempo, que o assunto está em voga, mas que ainda é incipiente do ponto de vista sócio-cultural-corporativo.

O percurso é árduo e caminhar é preciso. A evolução do Compliance se torna ainda mais necessária quando se reconhece que, no início do terceiro milênio, ainda imperam a avareza e a abstenção moral de uma minoria de profissionais que se valem da assistência à saúde para perseguir objetivos espúrios, antiéticos e, pior, em prejuízo da coletividade.

A perpetuação de determinadas distorções somente interessa a quem delas se beneficia. É preciso que as Operadoras do Setor de Saúde Suplementar aprimorem seus conhecimentos técnicos para enfrentar as resistências e dificuldades do mercado. A sociedade de risco traz um mundo de incertezas e de complexa mensuração e quantificação, aprimorados pelas inovações tecnológicas e por mentes delinquentes extremamente criativas.

Para tentar combater, com eficiência, as fraudes em OPME, é primordial que as Operadoras de Saúde implementem um programa de Compliance capaz de integrar os processos organizacionais e, numa visão macro, estabelecer mecanismos internos de identificação, análise e tratamento dos riscos, capturando aqueles mais emergentes e monitorando-os com o máximo de criticidade. Afinal, é por meio de uma gestão focada que se procede à detecção, prevenção e tratamento de desvios, estejam eles voltados ao aspecto jurídico-regulatório da atividade, à lavagem de dinheiro, fraude, corrução ou quaisquer inconformidades que, em maior ou menor medida, possam configurar operações suspeitas ou infrações propriamente ditas.

De forma inaceitável, o mercantilismo corrói o comunitarismo[54]. Já é hora de o Setor de Saúde esboçar uma reação, o que não se fará sozinho, mas com a ajuda das Agências Reguladoras, do Ministério Público e do próprio Estado, este último contribuindo com a promulgação de leis (Legislativo), com a elaboração de atos normativos e consequente fiscalização da atividade-fim (Executivo) e, finalmente, com a distribuição da Justiça e a punição exemplar (Judiciário) daqueles que resumem o Setor da Saúde à “medicina de balcão” ou “advocacia de porta de hospital”[55], ambos com lucratividade promíscua e desumana.

 

V – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADAMS, John. Risco. São Paulo: Senac, 2009;

BALZAC, Honoré de. Eugênia Grandet. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1981;

BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Ed. Paulus, 1997;

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BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed.34, 2010;

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GABARDO, Emerson. CASTELLA, Gabriel Morettini. Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Vol. 60. Abr-Jun/2015;

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CRESPO, Danilo Leme. A evolução da Teoria Contratual e sua evolução na Sociedade Contemporânea: uma reflexão sobre a (des)credibilidade do Contrato de Consumo. Dissertação de Mestrado apresentada no programa de Direitos Difusos e Coletivos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo;

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SAAD-DINIZ, Euardo. Brasil vs Golias: os 30 anos da Responsabilidade Penal da pessoa Jurídica e as Novas Tendências e Compliance. Revista dos Tribunais. Vol. 988/2018, Fev/18;

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SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Compliance e Direito Penal na era pós-Lava Jato. Revista dos Tribunais. Vol. 979/2017, Maio/2017.

[1]Advogado. Especialista em Direito Empresarial e Seguro. LLM em Direito Empresarial, inclusive com cursos de especialização em Saúde na Harvard University.

[2]Advogado. Especialista em Direito das Relações de Consumo e Direito do Seguro/Resseguro. Mestre e Doutorando em Direito.

[3] SAAD-DINIZ, Eduardo. Brasil vs Golias: os 30 anos da Responsabilidade Penal da pessoa Jurídica e as Novas Tendências e Compliance. Revista dos Tribunais. Vol. 988/2018, Fev/18, p.26

[4] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Compliance e Direito Penal na era pós-Lava Jato. Revista dos Tribunais. Vol. 979/2017, Maio/2017, p. 32 .

[5] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.14

[6] http://www.ans.gov.br/images/stories/Particitacao_da_sociedade/2016_gt_opme/gt-opme-relatoriointegral.pdf

 

[7] http://www.ans.gov.br/images/stories/Particitacao_da_sociedade/2016_gt_opme/gt-opme-relatoriointegral.pdf

[8] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.22-90

[9] SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução de Clóvis Marques, 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015, pp.14-20

[10] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p.42

[11] REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p.42

[12] MARQUES, Cláudia Lima. A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007, p.30

[13] MARQUES, Cláudia Lima. A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007, p.32

[14] MARQUES, Cláudia Lima. A nova crise do contrato: estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, 2007, pp.32-40

[15] As Comissões Parlamentares de Inquérito-CPIs foram instauradas na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.

[16] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.12-15

[17] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.12

[18] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.12

[19] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.90

[20] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.90

[21] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.91

[22] Código de Ética do Conselho Federal de Medicina. É vedado ao Médico: Art. 58 – O exercício mercantilista da medicina.

[23] Código de Ética do Conselho Federal de Medicina. I – Princípios Fundamentais: IV – Ao médico cabe zelar e trabalhar pelo perfeito desempenho ético da Medicina, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão; IX – A Medicina não pode, em nenhuma circunstância ou forma, ser exercida como comércio; X – O trabalho do médico não pode ser explorado por terceiros com objetivos de lucro, finalidade política ou religiosa.

[24] Código de Ética do Conselho Federal de Medicina. É vedado ao médico: Art. 69 – Exercer simultaneamente a Medicina e a Farmácia ou obter vantagem pelo encaminhamento de procedimentos, pela comercialização de medicamentos, órteses, próteses ou implantes de qualquer natureza, cuja compra decorra de influência direta em virtude de sua atividade profissional.

[25] Código de Ética do Conselho Federal da Advocacia: Art. 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: VIII – abster-se de: a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente;

[26] Código de Ética do Conselho Federal da Advocacia: VIII – abster-se de: d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana; Art. 20. O advogado deve abster-se de patrocinar causa contrária à ética, à moral ou à validade de ato jurídico em que tenha colaborado, orientado ou conhecido em consulta.

[27] Código de Ética do Conselho Federal da Advocacia: Art. 5º O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização.

[28] Código de Ética do Conselho Federal da Advocacia: Art. 6º É defeso ao advogado expor os fatos em Juízo falseando deliberadamente a verdade ou estribando-se na má-fé.

[29] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.91

[30] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.17

[31] http://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2017/03/1870824-fraudes-na-saude-custam-r-225-bilhoes-no-setor-privado.shtml

[32] ttps://www.iess.org.br

[33] CRESPO, Danilo Leme. A evolução da Teoria Contratual e sua evolução na Sociedade Contemporânea: uma reflexão sobre a (des)credibilidade do Contrato de Consumo. Dissertação de Mestrado apresentada no programa de Direitos Difusos e Coletivos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

[34] http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/02/bzygmunt-baumanb-vivemos-o-fim-do-futuro.html

[35] JONAS, Hans. O princípio Responsabilidade: Ensaio sobre uma Ética para a Civilização Tecnológica. Ed. Puc Rio. p. 77

[36] BALZAC, Honoré de. Eugênia Grandet. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1981, p.102

[37] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadorias; tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p.45

[38] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed.34, 2010, p. 12-26

[39] ADAMS, John. Risco. São Paulo: Senac, 2009, p. 40

 

[40] BAUMAN, Zygmunt. Ética pós-moderna. Tradução João Rezende Costa. São Paulo: Ed. Paulus, 1997, p. 230

[41] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed.34, 2010, p. 35

[42] SARLET, Ingo Wolgang. SAAVEDRA, Giovani Agostini. Judicalização, Reserva do Possível e Compliance na área da saúde. R. Dir. Gr. Fund., Vitória, v.18, nº 1, Jan/Abr-2017, p. 263

[43] CARVALHOSA, Modesto. Considerações sobre a Lei anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei nº 12846/13. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 103

[44] RIOS, Rodrigo Sánchez. Criminal Compliance – Prevenção e minimização de riscos na gestão da atividade empresaria. Revista dos Tribunais. Vol. 114/2015, Maio-Jun/2015, p. 341-375

[45] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Compliance e Direito Penal na era pós-Lava Jato. Revista dos Tribunais. Vol. 979/2017, Maio/2017, p. 32

[46] SARLET, Ingo Wolgang. SAAVEDRA, Giovani Agostini. Judicialização, Reserva do Possível e Compliance na área da saúde. R. Dir. Gr. Fund., Vitória, v.18, nº 1, Jan/Abr-2017, p. 266-267

[47] BENEDETTI, Carla Rahal. Criminal Compliance: Instrumento de Prevenção Criminal Corporativa e Transferência de Responsabilidade Penal. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo. v. 59, jan. 2013, p. 3003 e GABARDO, Emerson. CASTELLA, Gabriel Morettini. Revista de Direito Administrativo e Constitucional. Vol. 60. Abr-Jun/2015, p. 135

[48] Ministério de Justiça – Secretaria de Direito Econômico – Portaria 14/2004 e suas atualizações

[49] SARLET, Ingo Wolgang. SAAVEDRA, Giovani Agostini. Judicialização, Reserva do Possível e Compliance na área da saúde. R. Dir. Gr. Fund., Vitória, v.18, nº 1, Jan/Abr-2017, p. 272-273

[50] https://iess.org.br

[51] https://iess.org.br

[52] https://iess.org.br

[53] https://iess.org.br

[54] SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Tradução de Clóvis Marques, 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015, p.202

[55] RAMOS, Pedro Luís Gonçalves. A máfia das próteses: uma ameaça à saúde. São Paulo: Évora, 2016, p.103